03 de dezembro, 9h-12h

A teoria da prática de Pierre Bourdieu

Juliana Closel Miraldi

O minicurso objetiva introduzir a obra bourdieusiana e apresentar a teoria da prática elaborada pelo sociólogo francês sob dois pontos de vista: o da construção das bases epistemológicas e o da elaboração do sistema conceitual. A partir do diálogo crítico que Bourdieu estabelece com as principais correntes teóricas de sua época, e de sua tomada de posição em relação a elas, visamos demonstrar que o a concepção bourdieusiana de produção de conhecimento científico se funda como processo. Ademais, procuraremos explorar as condições de possibilidades específicas do fazer sociológico, a saber: a posição do observador e do seu campo de produção, a noção de causalidade e as condições de verdade para sociologia. Já no que se refere ao sistema conceitual, iniciaremos tratando da relação entre o econômico e o simbólico na construção teórica de Bourdieu e seguiremos explorando a tríade conceitual “campo”, “habitus” e “práticas”, mas também mobilizando outros conceitos interdependentes e procurando defini-los relacionalmente.

04 de dezembro, 9h-12h

A gênese da teoria do habitus

Tábata Berg

Pierre Bourdieu iniciou a construção de sua teoria do habitus a partir do trabalho etnográfico que realizou na Argélia, interessado particularmente nas revoltas a favor da independência argelina e de sua relação com o socialismo 1. Sua principal preocupação era compreender as condições econômico-sociais nas quais a consciência de classe poderia surgir como um elemento revolucionário; mais especificamente, se havia condições de possibilidade do subproletariado e o camponês proletarizado argelino constituir-se em sujeito revolucionário.

Bourdieu estava analisando uma sociedade que, na década de 60, ainda era colônia francesa; a colonização foi fator determinante para a entrada da lógica capitalista numa sociedade, até então, pautada em uma economia tradicional. Ele ressalta que, diferentemente da sociedade europeia, cujo processo de construção do modo de produção capitalista e adaptação ao mesmo foi relativamente longo, o colonialismo impõe bruscamente, e de forma exógena, essa lógica às colônias. A relação entre a consciência, as práticas e as contradições objetivas específicas da lógica colonial será, portanto, o ponto de partida para reconstruirmos a gênese da teoria do habitus bourdieusiana.

Optamos, assim, por trabalhar com um recorte de textos deste período, são eles: Travail et travalleurs en Argérie (1963); Le déracinement: la crise de l’agricultures traditionnelle en Algérie (1964) e O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais (1977, 1979,) 2. Os dois primeiros textos foram escritos em períodos muito próximos, todavia, eles tiveram enfoques distintos, ainda que profundamente interligados, aos quais sempre que necessário faremos referência. Estes textos que estamos indicando como apoio concentram os principais fundamentos da gênese da teoria do habitus, fundamentos estes que permaneceram presentes, em grande medida, em todo o seu processo de construção. Neles, Bourdieu estabelece a primazia das condições materiais de existência – condições econômicas e sociais – sobre a consciência (habitus) e as práticas. Em resumo: o habitus (em sua gênese) e, consequentemente, as práticas estão sempre, para Bourdieu, ancorados nas condições materiais de existência e só podem ser compreendidos em referência a elas.

No entanto ele explicita que essa relação não pressupõe, de forma alguma, um reflexo mecânico, onde o habitus e as práticas seriam determinações diretas da condição objetiva. Esse caráter não mecânico só pode dar-se por meio da mediaçãoativada consciência: “A atitude econômica de cada sujeito depende de suas condições materiais de existência pela mediação do devir objetivo do grupo do qual ele faz parte ou, mais precisamente, pela mediação da consciência.

É importante destacarmos, porém, uma vez que este é um aspecto central para compreendermos a teoria do habitus, que a consciência – enquanto mediadora – pode aparecer em sua forma não explícita: “a consciência da situação de classe pode ser também, sob outro ponto de vista, uma inconsciência dessa situação.” (1979, p. 133). Bourdieu estabelece, assim, uma relação genuinamente dialética entre as condições materiais de existência, consciência (habitus) e práticas, criando um primeiro esboço de sua teoria habitus. Vejamos o trecho a seguir:

A consciência do desemprego estrutural pode inspirar as condutas e determinar as opiniões sem aparecer claramente aos espíritos que ela assombra e sem alcançar formular-se explicitamente. E isso, especialmente em relação às categorias mais desfavorecidas, o subproletariado das cidades e os camponeses proletarizados. Também, antes de descrever as formas e a degradação da consciência do desemprego (e da consciência da dominação colonial que lhe é solidária), trata-se de determinar como, implícita ou explícita, ela dirige as condutas e anima os pensamentos. (1963, p. 268. Grifos nossos. Tradução nossa) 3.

Nele, vemos o coroamento dessa relação: embora a consciência, especialmente em condições nas quais a necessidade material é imperativa – Bourdieu, como explicitado neste trecho, se refere ao subproletariado e camponeses proletarizados –, possa dar-se enquanto não consciência, ou seja, a consciência pode não explicitar-se enquanto tal, ela permanece tendo um papel ativo na determinação das práticas: “implícita ou explícita, ela dirige as condutas e anima os pensamentos”.

É preciso esclarecer, contudo, que, para Bourdieu, a consciência só pode ser apreendida a partir do seu caráter prático e, portanto. Esta é outra importante característica da gênese do habitus. Ele não é uma estrutura ideal, nem mesmo puramente mental; antes, encontra-se inscrito, assim como o caráter ativo da consciência que lhe é intrínseco, na objetividade dos corpos, das práticas. Ao compreender a consciência (habitus) enquanto mediadora entre a objetividade do mundo e a objetividade das práticas (objetividade do sujeito/agente), o autor tem por pretensão romper com a percepção dualista entre sujeito e objeto, matéria e espírito, forma e conteúdo, teoria e prática. Em resumo, desde sua gênese, o habitus tem por pretensão compreender a relação sujeito/objeto para além dos pares de oposição – culminando, por vezes, como já explicitado, na supressão total dessas dualidades. A citação a seguir expressa essa percepção do caráter prático da consciência.

Os trabalhadores tem uma justa percepção de sua situação objetiva e, consequentemente, das chances objetivas oferecidas aos indivíduos de sua condição, mesmo que eles não consigam formular em um discurso adequado, essa consciência se exprime sem equívoco na linguagem das condutas e das atitudes. (Idem. pp. 328 e 329. Tradução nossa)4

Faremos uma breve reconstrução da gênese das questões expostas anteriormente, tendo como ponto de partida os três textos, citados acima, deste período, dos quais o último é uma síntese dos dois primeiros, uma sistematização conceitual das questões presentes neles de forma esparsa.

1 Bourdieu vai analisar a relação entre as atitudes contraditórias do subproletariado e camponês proletarizado argelino e os grupos socialistas que lutavam pela revolução na Argélia.

2 Foi publicado na França como Argérie 60: structures économiques et structures temporelles(1977).

3 Original: “La conscience du chômage structurel peut inspirer les conduites et determiner les opinions sans apparaître clairement aux esprits qu’elle hante et sans parvenir à se formuler explicitement. Et cela, tout spécialement dans les catégories sociales les plus défavorisées, les sous-prolétariat des villes et les ruraux prolétarisés. Aussi, avant de décrire les formes et les degrés de la conscience du chômage (et de la conscience de la domination coloniale qui en est solidaire), il s’agit de déterminer comment, implicite ou explicite, elle dirige les conduites et anime les pensées.

4 Original: “Les travailleurs ont une juste perception de la situation objective et, en l’occurence, des chances objectives qui s’offrent aux individus de leur condition; lors même qu’elle ne parvient pas à se formuler dans un discours adéquat, cette conscience s’exprime sans équivoque dans le langage des conduits et des attitudes.